Cultura

Luís Sousa Ferreira: “O entretenimento ajuda a adiar. A cultura faz-te doer”

Estava emperrado este texto. Saí para almoçar a ver se alguma das várias ideias que andavam a germinar na minha cabeça florescia como deve ser. No Bairro Alto, em Lisboa, onde está a redacção do É Apenas Fumaça, passear pelas ruelas ajuda sempre a procurar inspiração. A caminho da padaria ouço aquele som estridente, metálico e inconfundível do amolador. Lá ia ele, de bicicleta na mão e gaita nos beiços, anunciando a disponibilidade da pedra de amolar para amaciar tesouras e facas perras.

Lembrei-me da infância, da minha aldeia e de como este som faz parte do meu código de referências, me situa e constrói. O amolador é mais do que uma memória ou recordação saudosista, é parte da cultura da minha terra, de um país rural que já quase não existe, de mim próprio. Mas nunca o tinha olhado assim.

Neste exercício que é tentar perceber o mundo através da cultura, as artes e o património costumam ser cabeças de cartaz. Têm maior acesso aos meios de comunicação social e ocupam espaços físicos que refletem grandiosidade e poder. Mas será a cultura apenas o que se passa nos museus, teatros e centros culturais?

Luís Sousa Ferreira acha que não. “A cultura do dia-a-dia” é o mote do 23 milhas, o projeto cultural que dirige no município de Ílhavo e que junta música, teatro, dança, arquitetura, design, ilustração e cinema cruzando a contemporaneidade com os “típicos eventos e rituais ilhavenses”.

Designer, produtor, programador cultural, passou pelo Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas e pela Experimentadesign. Não vem de uma aldeia perdida na beira, que a terra que o viu nascer fica no Ribatejo. Mas quando era ainda meio menino quis fazer coisas naquele cantinho chamado Cem Soldos, em Tomar, e dos sonhos nasceu o festival Bons Sons, de que é diretor artístico. Planeia ainda o Caminhos do Médio Tejo, programa cultural em rede que liga 13 municípios: Abrantes, Alcanena, Constância, Entroncamento, Ferreira do Zêzere, Mação, Ourém, Sardoal, Sertã, Tomar, Torres Novas, Vila de Rei e Vila Nova da Barquinha.

O papel das autarquias locais no apoio às artes e aos bens culturais é determinante no contexto dos gastos públicos. Segundo as conclusões do estudo “Mapear os recursos, levantamento da legislação, caracterização dos atores, comparação internacional”, elaborado por José Luís Garcia, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (no âmbito do plano de estudos Cultura 2020, promovido pelo Governo anterior): “Portugal regista baixos níveis de financiamento público em comparação com outros países europeus. Na repartição entre os níveis Central e Local a parte maioritária cabe a este último, sendo que Portugal é um dos países em que o seu peso é mais relevante.”

O Inquérito ao Financiamento Público das Atividades Culturais, Criativas e Desportivas, de 2016, diz que “as Câmaras Municipais afetaram 385,7 milhões de euros às atividades culturais e criativas (menos 1,7% do que no ano anterior), destacando-se os seguintes domínios: ‘atividades interdisciplinares’ (28,8%), ‘artes do espetáculo’ (22,8%), ‘património cultural’ (20,5%), e ‘bibliotecas e arquivos’ (17,2%).”

Na União Europeia, Portugal fica na cauda do investimento público quando se analisam os gastos em “recreação, cultura e religião”, a rubrica em que o Eurostat – Gabinete de Estatísticas da União Europeia – agrupa as despesas do Estado com cultura.
É por isso que de cada vez que se propõe um novo modelo de financiamento às artes ou um Orçamento de Estado os artistas protestam. De tempos a tempos, ouve-se o chavão “1% para Cultura”. Em abril passado, a contestação foi forte e chegou aos ouvidos do primeiro-ministro, António Costa, a ponto de este se ver obrigado a responder através de uma carta aberta.

Luís Sousa Ferreira considera que a questão é mais profunda do que o dinheiro. É preciso saber a quem se dá e porquê. Mas, sobretudo, se esse investimento serve para nos olharmos ao espelho: “Falamos muito mal do Estado Novo, mas ainda não conseguimos dizer nada de novo sobre nós. Ainda usamos as referências. O que eles nos disseram que Portugal era é o que nós dizemos ainda hoje.”

Se a cultura servir para nos espicaçar, como fazem as facas afiadas, então talvez Luís Ferreira tenha um pouco de amolador: “O entretenimento ajuda muito a adiar, a adiar a consciência de ti próprio, de alguma forma. E a cultura é um bocadinho ao contrário. Faz-te doer. Tem um processo transformador, faz-te pensar sobre ti, sobre os teus, sobre o teu contexto, cria-te espírito crítico.”

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