Brasil

Carolina Rocha: “Há um projeto de extermínio da população jovem, negra, pobre e favelada no Brasil”

No passado 6 de Fevereiro, Michel Temer, empossado presidente do Brasil após o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, decretou uma intervenção federal no Rio de Janeiro, passando a responsabilidade do comando de segurança de um dos mais populosos estados brasileiros para as forças armadas e militares – o que não acontecia desde o final da ditadura militar, em 1985. O anúncio da ocupação militar foi acompanhado pela preocupação de Temer (para muitos irónica) com a morte de inocentes: “Não podemos aceitar passivamente a morte de inocentes, e é intolerável que estejamos enterrando pais e mães de família, trabalhadores, policiais, jovens e crianças”, disse o presidente, depois de ter assinado o decreto.

Com a mesma caneta, a mesma cor de fato e o mesmo ar solene, rubricaram o documento três conhecidas figuras da política brasileira. Michel Temer, atual presidente, condenado por ter feito doações ilegais na campanha para as eleições de 2014, impedido de concorrer a cargos públicos durante 8 anos. Luiz Fernando Pezão, governador do estado do Rio de Janeiro, condenado, em Fevereiro de 2017, por abuso de poder económico e político, tornando-o também inelegível por 8 anos (Pezão pediu recurso e está à espera da resposta do Tribunal Superior Eleitoral). E ainda Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados e pré-candidato à presidência do Brasil, envolvido no famoso processo judicial “Lava Jato”, por suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro.

O objetivo da intervenção militar era, anunciou-se nesse dia, “por termo ao grave comprometimento da ordem pública”. Avançavam então os militares, trazendo ao presente as memórias ainda vivas de uma ditadura não tão distante. Mas se esse era o objetivo, dados recolhidos pelo Jornal EXTRA, mostram que o plano tem falhado redondamente. Não só a violência e a criminalidade não diminuíram, como aumentaram desde a intervenção. Os homicídios no Rio de Janeiro tiveram um aumento homólogo de 1,8%, de 2017 para 2018. Mais significativo é o facto de o bairro com mais assassinatos desde o início da intervenção ter sido justamente o local com mais ações das Forças Armadas: Bangu, com pelo menos dez casos de mortes.

Isto acontece num país onde morre uma pessoa jovem negra a cada 23 minutos, e onde a possibilidade de jovens negros serem assassinados é três vezes superior à de jovens brancos. Carolina Rocha, escritora, poeta, historiadora e socióloga fala de “genocídio” e diz: “A gente hoje tem uma política e um projeto de poder muito bem desenhado, nada camuflado, de extermínio de uma população jovem, negra, pobre e favelada, no Brasil.”

Foi na cidade maravilhosa que mataram Marielle Franco. Vereadora eleita com cerca de 46 mil votos, foi brutalmente assassinada, aos 38 anos, enquanto voltava de carro de uma conferência chamada “Jovens negras movendo as estruturas”. Como se as quatro balas que lhe entraram no crânio fossem uma mensagem para quem se atreve a desafiar o status quo. Carolina Rocha di-lo: “(A morte de Marielle) está dando um recado para todas as mulheres negras: «Olha só o que é que pode acontecer com vocês que estão aí lutando pelos direitos humanos. Olha só o que é que está acontecendo com vocês que estão achando que podem mudar uma estrutura racista, patriarcal, elitista, opressora». Então é um recado para todos que estão nessa luta”.

Marielle, que entregava parte da sua vida política à denúncia de assassínios de jovens negros e de polícias, no Rio de Janeiro, escreveu um tweet, no dia anterior à sua morte. Lia-se: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM [polícia militar]. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Foi essa guerra que a matou.

Marielle era negra, favelada, bissexual, feminista, de Esquerda, anti-racista, anti-intervenção militar. É por isso que a sua morte tem, em ano de eleições, especial importância. Tal como tem o encarceramento de Lula da Silva, ex-presidente brasileiro, cuja governação retirou dezenas de milhões de pessoas da pobreza, condenado a 12 anos e um mês por corrupção e branqueamento de capitais, e preso ainda antes de se terem esgotado todos os recursos previstos na lei, uma decisão que vários especialistas consideram inconstitucional (aqui e aqui).

Do outro lado, paciente, esperando pelo momento certo, está Jair Messias Bolsonaro, consistentemente em segundo lugar (atrás de Lula, preso) nas intenções de voto para as eleições Presidenciais de Outubro. Bolsonaro, conhecido como “o Trump brasileiro”, é deputado federal no Rio de Janeiro. Foi militar durante a ditadura, que ainda hoje defende (e recusa que tenha sido uma ditadura). É homofóbico, defensor da tortura, nacionalista e xenófobo, racista. A seis meses das eleições, é ele quem – aparentemente – mais perto está de poder chefiar um dos maiores países do mundo.

Foi sobre tudo isto que conversámos com a Carolina Rocha, que nos diz que “a ameaça de ditadura militar é real, ela está aí”.

Fotografia: Mídia Ninja

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