Opinião

“Marcelo anda a brincar com o fogo”, por Pedro Miguel Santos


A imagem nunca mais me saiu da cabeça. Corria a campanha para as últimas presidenciais e um desenho semelhante ao logótipo da “Vaca que Ri”, a popular marca francesa de queijo fundido, estilizava a cara do Presidente com a seguinte legenda: “Marcelo. O Cavaco que ri.” [pesquisem a expressão nas imagens do vosso motor de busca]. Além da piada, o cartoon tem o dom de fazer pontaria certeira ao estilo pop de Marcelo, mas também às suas semelhanças ideológicas com o anterior ocupante de Belém – ambos foram presidentes do PSD e ambos são conservadores, católicos, liberais na economia, embora tragam sempre à lapela a conversa da importância do Estado Social, do combate às desigualdades, da ajuda a quem mais precisa.

A grande diferença entre Marcelo e Cavaco é que o último não nasceu nos salões do Poder. Vai uma distância bem grande entre ser criado numa família de pequenos agricultores e negociantes em Boliqueime, Loulé, de onde é natural Aníbal e ser transportado para o hospital, ainda dentro da barriga da mãe, para nascer, pelo futuro sucessor de Salazar, Marcello Caetano, à época presidente da Comissão Executiva da União Nacional, o único partido do Estado Novo.

Foi do privilégio de ter sido educado e criado entre as elites que Rebelo de Sousa se soube sempre servir para chegar à Presidência da República.

Academicamente é tão competente como Cavaco – ambos doutorados, com bibliografia publicada, professores de universidade. Não é politicamente mais hábil que Aníbal – em Portugal, se a bitola for ganhar eleições, ninguém ganhou tantas, de forma tão retumbante, ninguém esteve tanto tempo no poder, em Democracia.

Portanto, o que tem Marcelo? Ri.

E o rir – uma metáfora-síntese das suas qualidades teatrais e da forma como entende melhor do que ninguém a comunicação do século XXI, o poder da imagem – é que lhe permite, na vida, ir dizendo e fazendo tudo e o seu contrário, sem sair muito beliscado.

Na época das redes sociais, Marcelo percebeu que são os vídeos, as selfies, os memes que influenciam o Povo – com o qual comunica diretamente – mas também as conversas de jornalistas nas redações. Já não precisa de jantares, encontros furtivos, reuniões secretas. Basta saber que em cada jornal, televisão ou rádio nacional há sempre profissionais, todos os dias, mobilizados para lhe seguir os passos. Não interessa onde vai, com quem falará ou se há real novidade nas suas declarações.

A ofuscar tudo isso está a forma como se comportará. E ele sabe que a notícia é essa. A selfie com os jovens, o abraço à velhinha que chora, a distribuição de comida a pessoas sem-abrigo, as quebras de protocolo. Tudo isto existe, tudo isto é fado, tudo isto resulta em televisão, nas redes sociais. Veja-se a invenção da expressão #marselfie ou o surgimento de páginas de Facebook como “Marcelo a fazer coisas”.

Marcelo foi jornalista e diretor do “Expresso”, deu “missa” aos Domingos, na TVI, durante quase uma década. Começou no santo dia 13 de maio de 2000, pelo meio foi até à RTP, mas voltou à casa de partida, onde se despediu do seu comentário político, a 12 de outubro de 2015, como nunca se tinha visto antes em televisão: pivôs, diretores e ex-diretores de informação à sua volta, entre o embevecimento, a chalaça e os encómios, abençoavam a sua corrida a Belém.

Não por acaso, o Presidente rodeou-se de jornalistas das TV’s privadas para o assessorarem. Paulo Magalhães, ex-editor de política da Rádio Renascença e da TVI, que moderou Política Mesmo, na TVI24, – ora com Marques Mendes, ora com Manuela Ferreira Leite – foi para assessor para a Comunicação Social, de modo a ser “um filtro do Presidente”. Luís Ferreira Lopes, em tempos editor de programas e editor executivo na SIC, tornou-se assessor económico para a área das empresas e inovação. Também de Carnaxide veio Maria João Ruela. Fundadora da primeira estação privada do país e um dos rostos mais conhecidos do canal, foi convidada para assessora para os assuntos sociais.

É evidente que cada caso de sucesso empresarial, cada história de superação e abnegação pessoal, cada episódio de sofrimento consolado em direto são criados ou enquadrados para as câmaras. Têm de ser vistos, partilhados, “tagados”.

No campeonato das audiências, Marcelo é líder e agora passa em todos os canais. Por isso me parecem tão indignas as suas palavras sobre incêndios na última grande entrevista que deu ao Público: “É decisivo. O que eu quis dizer é que é decisivo. Dito por outros termos: voltasse a correr mal o que correu mal no ano passado, nos anos que vão até ao fim do meu mandato, isso seria, só por si, no meu espírito, impeditivo de uma recandidatura.

Como é possível alguém usar de forma tão despudorada a tragédia do último ano para dar a ideia de que ela condiciona a sua própria vida política, de que no fundo também ele é vítima? Acaso Marcelo tem algum poder Constitucional que o permita impedir ou gerir a ocorrência de fogos? Depende dele o combate, a organização dos meios ou a cabimentação orçamental para tal? Pode, sozinho, decretar o Estado de Sítio ou de Emergência e mandar as Forças Armadas para o terreno, apagar fogos, por exemplo? Não pode nenhuma destas coisas.

A sua resposta é um aproveitamento torpe do sofrimento de quem foi afetado pelos incêndios do ano passado. Dizendo isto, ignora, ao contrário do que devia fazer um Presidente da República, qualquer pensamento crítico e estruturado sobre os problemas crónicos da floresta portuguesa, incêndios e o seu combate, sobre as alterações climáticas, sobre as portas giratórias e a corrupção que impedem um ordenamento do território centrado no bem comum. Os fogos não dependem de Marcelo e ele sabe-o muito bem. E também sabe que é difícil repetir-se nos próximos tempos a mortandade e horror do ano passado, dando assim a ideia de que, se não aconteceu, foi porque teve um papel nisso, ajudou a evitá-lo.

Uma narrativa de alguém que percebe bem o mundo da comunicação e se pode dar ao luxo de a promover. Porque a conversa do paizinho protetor e abnegado vem de longe, da alcofa onde Marcelo foi criado. E ainda pega.

Marcelo não deixará de ser Marcelo, dando uma no cravo e outra na ferradura. Daí o seu veto à alteração da Lei de Identidade de Género – feito para agradar à ala radical-católica-conservadora-OpusDei que o apoia -, mas cuja aceitação no Parlamento não será fácil. Bem pode argumentar que esta atitude não é preconceito político-ideológico, apenas ponderação. Mas nestes assuntos – como na campanha pela despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez – Marcelo é Cavaco. O que ri.

Fotografia: http://en.kremlin.ru/

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